Conto: A Outra Face da Máscara da Morte Rubra (Releitura do conto de Edgar Allan Poe) por Anderson Silva

quinta-feira, 16 de junho de 2016
A Morte Rubra
Ou Até Onde Você Iria Por Justiça?

(O outro lado do conto “A Máscara da Morte Rubra” de Edgar Allan Poe)


 A “Morte Rubra” havia muito devastava o país. Jamais se viu peste tão fatal ou tão hedionda. O sangue era sua revelação e sua marca. A cor vermelha e o horror do sangue. Surgia com dores agudas e súbita tontura, seguidas de profuso sangramento pelos poros, e então a morte. As manchas rubras no corpo e principalmente no rosto da vítima eram o estigma da peste que a privava da ajuda e compaixão dos semelhantes. E entre o aparecimento, a evolução e o fim da doença não se passava mais de meia hora.

Mas o príncipe Próspero era feliz, destemido e astuto. Quando a população de seus domínios se reduziu à metade, mandou vir à sua presença um milhar de amigos sadios e divertidos dentre os cavalheiros e damas da corte e com eles retirou-se, em total reclusão, para um dos seus mosteiros encastelados. Era uma construção imensa e magnífica, criação do gosto excêntrico, mas grandioso do próprio príncipe. Circundava-a muralha forte e muito alta, com portas de ferro. Depois de entrarem, os cortesãos trouxeram fornalhas e grandes martelos para soldar os ferrolhos. Resolveram não permitir qualquer meio de entrada ou saída aos súbitos impulsos de desespero dos que estavam fora ou aos furores do que estavam dentro.

Enquanto o príncipe e seus escolhidos se retiravam do problema, o povo permaneceu do lado de fora para enfrentar a peste. Metade da população do país já havia perecido e os poucos que sobreviveram lutavam de todas as maneiras para manter-se a salvos do mal que os assolava. 

 A cena de horror era tenebrosa. Pilhas e pilhas de cadáveres se acumulavam por todos os cantos do país. Homens, mulheres, crianças, velhos, todos estavam na mira da Morte Rubra, que não se apiedava de ninguém. Não havia covas suficientes para os mortos e os vivos não se arriscavam a enterrá-los para não estabelecer contato com a peste.

O povo, que ainda tinha condições, corria de um lado para o outro buscando quem lhes ajudasse, já que seu líder e governante os abandonou à própria sorte. Filas e mais filas se acumulavam nas portas dos curandeiros e médicos, que ainda lutavam para ajudar os menos favorecidos. Mas, infelizmente, a morte ainda se mantinha totalmente presente no dia a dia dos habitantes desse país em guerra com tal praga.

Mas, do meio do caos, eis que algo inesperado acontece. Uma mulher que pranteava seus dois filhos mortos há vários dias parecia imune aos ataques da Morte Rubra. Seu nome era Vitória e as lágrimas de sua face pareciam não secar nunca. A dor no seu peito parecia não cessar. Seus filhos jaziam deitados em suas respectivas camas. A mãe, caída ao chão e sem comer ou beber por muitos dias, buscava forças para colocar-se em pé novamente. Mas forças era algo que ela não possuía mais e permaneceu ali, chorando por mais algum tempo.

Ao final do quinto ou sexto mês (isso a mulher já não saberia dizer), quando parecia entregue à morte por falta de alimentação, algo soou lá no fundo do seu inconsciente. Levantou o rosto abatido e cansado do pó da terra. Seus olhos agora secos tinham uma cor vermelha de tantas lágrimas. Parecia ter envelhecido uns cinquenta anos. Seu cabelo emaranhado e sujo agora estava mais grisalho. A Morte Rubra não havia levado sua vida, mas havia levado seus filhos e alguns anos de existência.

 - Você não é culpada pela morte de seus filhos! – disse uma voz lá no interior de sua cabeça.

Ela olhou em volta. A fome estava fazendo com que ouvisse vozes. A perda dos filhos estava lhe deixando louca.

 - Pare de se lamentar! – insistiu a voz no interior de sua cabeça – Levante-se! – a voz gritou com ela – Já pranteou o suficiente!

Ela ainda se recusava a dar crédito para aquela voz louca dentro de seu cérebro. Tornou a pôr o rosto no chão.

- Levante-se!! – gritou a voz e ela deu um pulo.

- Deixe-me morrer com meus filhos! – ela implorou, mas sem chorar.

- Acha isso justo? – perguntou a voz.

 Ela pensou por um momento. Juntou as poucas forças que tinha e colocou-se de joelhos. Seus ossos doíam e suas pernas ardiam como fogo. Seus olhos escureceram e sentiu que ia desmaiar.

- Não desmaie agora! – a voz tornou a lhe chamar a atenção. – Não temos tempo para ficar lamentando e chorando. Não temos tempo para ficar prostrada.

Vitória arregalou os olhos. Seus filhos estavam ali sobre a cama. A vida fora roubada deles e agora não passavam de corpos em crescente estado de putrefação.

- E o que é justo? – Ela perguntou colocando-se em pé. Nem acreditou que conseguiria, mas estava em pé novamente. 

Houve silêncio. A voz não respondeu mais. A ex mãe olhou em volta tentando se encontrar. Firmar-se na realidade que a rodeava.

- Meus filhos queridos! – ela olhou para eles com ternura de mãe, mas não chorava mais. A fonte de lagrimas havia secado.

- É errado os vivos apenas lamentarem seus mortos e não buscarem justiça! – disse a voz novamente.

- O que quer de mim? – ela pegou-se interrogando o silêncio.

Com as poucas forças que pôde reunir, dirigiu-se para a porta de saída. O sol brilhava mesmo com o forte odor de morte que vinha da rua. O vento levava de um lado para outro o cheiro dos corpos espalhados pelas vielas e calçadas. Corpos que foram abandonados dentro e fora das casas. Os poucos que restavam vivos se recusavam a ter contato com os mortos, mas isso não os livrava da terrível sina de, a qualquer momento, depararem-se com a Morte Escarlate. Mas, Vitória, que teve contato grande com a Morte Rubra, não apresentava sinais da moléstia.

- Por que eu ainda estou viva? Acaso nem a morte me quer? – ela se pegou indagando, enquanto pisava na rua deserta de seres vivos, mas acumulada de restos humanos. – A morte acaso se dá ao luxo de selecionar seus preferidos? – ela esboçou um sorriso. Afinal era engraçado que quem mais desejava a morte, ainda permanecia de pé e saudável. Mas não houve resposta alguma.

Começou a caminhar pelas ruas malcheirosas. Apesar de achar que estava sem rumo, lá no fundo sabia que estava no caminho certo.

- Siga a voz! – disse o vento que lhe trazia o forte cheiro da morte.

- Que voz? – as palavras saiam desconexas de sua boca. Ela nem percebia que falava sozinha.

Um cão todo machucado atravessou a rua bem em sua frente. O pobre animal esquecido por seu dono, que muito provavelmente já estava morto, mancava da pata direita. Praticamente rastejava pelos escombros do que já fora uma cidade.

  Vitória se pegou admirando aquele bicho:

- Nem a morte quis você, pobre companheiro! – ela exclamou com um sorriso desanimado.   Aquilo que já fora um cão um dia, parou seu trajeto, lhe deu um olhar tristonho, balançou a cauda ferida e em seguida continuou sua caminhada no meio dos defuntos em direção ao nada. 

Muitas vezes quando não restar mais nada, caminhe, a solução aparecerá no trajeto dessa caminhada, pensou Vitória, imaginando que o pobre animal fosse encontrar um final justo para sua pequena existência.

- O grande mal do ser humano não é os que causam a maldade, mas o descaso daqueles que não fazem o bem! – a voz que o vento trouxe foi bem nítida. A pobre mulher cansada parou por alguns segundos seu andar e refletiu sobre isso. – Não pare! – pediu a voz com carinho – Continue sua busca.

  As ruas estavam silenciosas. Apenas o vento agitava os odores dos corpos e movimentava uma nela ou porta, que no momento da fuga foram deixadas meio abertas. Papel velho, livros, dinheiro, roupas eram arrastados pelo ar que se movimentava.

- Não se culpe pela morte daqueles que ama! – a voz era meiga e agradável – Você sempre fez o possível e impossível por eles! – Isso era uma verdade que ela concordou com um balançar de cabeça. Sempre fez o que pôde pelo bem estar de seus familiares. Trabalhava noite e dia se fosse necessário.

Naquele momento ela se imaginou como aquele cão que cruzara seu caminho a poucos metros atrás, pois, como ele, ela se rastejava pela rua deserta. Indo em direção ao nada. Será que ia em direção ao nada?

- Você sempre fez sua parte! – continuou a voz doce trazida pelo vento.

- Será que fiz minha parte mesmo? – perguntou ao vento.

Silêncio. Ela olhou em volta. Nada.

Olhou para trás para ter certeza de que já estava longe de sua antiga casa, que agora era a cripta de seus dois únicos filhos mortos, mas na verdade ela tinha se afastado apenas alguns metros. Essa visão fez com que desanimasse de caminhar, então parou.

- Siga em frente! – a voz veio em tom de bronca – Pare de olhar para trás. Siga em frente. Sei que é difícil, mas deixe o passado, por enquanto, no passado.

Ela mordeu os lábios e deu mais um passo a frente.

- Não sou como aquele cachorro! – disse um pouco mais confiante – tenho um lugar para ir!

O vento pareceu sorrir.

- Não se culpe por ter feito o melhor, culpe aqueles que nada fizeram! – a voz veio novamente como um refresco para a alma. – Mantenha isso acesso em você!

Um passo. Outro passo. Tinha um objetivo para atingir. Sentiu desejo de olhar para a antiga casa. Sentiu vontade de voltar para junto de seus filhos mortos. A vontade de morrer junto com eles tornou-se tão desejável por alguns segundos. Sentiu um peso de desânimo descer sobre si. Sentiu que uma mão gigantesca ia sair daquela “casa cripta” e arrastá-la para dentro de novo. Fechou os olhos e gritou a plenos pulmões consigo mesma:

- Eu vou seguir em frente! – avançou cansada. Avançou devagar, mas determinada.

- Isso! – exclamou o vento, seu companheiro de caminhada agora. – siga sempre em frente!

Quanto tempo se passou ela jamais saberá dizer. Quanto andou, em metros ou quilômetros, isso também nunca dirá com certeza. Mas ela andou sem olhar para trás. Caminhou sem pensar com tristeza naqueles que ficaram na humilde casa. Olhar apenas para frente era o que tinha em mente.

- O mal só existe porque os bons se recusam a agir contra os malvados! – às vezes a voz do vento vinha para lembrá-la de que tinha de seguir em frente. 

De repente um leve cheiro de lenha queimando fez com que seu nariz farejasse o ar. Mais uma vez, lembrou-se do cão ferido. Afastou o pensamento e seguiu aquele cheiro.

Avistou ao longe uma casa de onde saía uma fumaça da pequena chaminé. Era uma casa no fim daquela rua silenciosa e assustadora. Não havia encontrado ninguém vivo pelo caminho. E agora aquela visão de uma chaminé fumegante lhe deu um pingo de esperança.

De sua boca quase saiu um obrigada, mas ela não sabia a quem agradecer.

- A maldade só será alcançada quando os justos levarem a justiça até ela! – agora a voz não vinha do vento, mas de dentro da pequena casa no fim da rua. – Para que os verdadeiros culpados recebam sua sentença é preciso que os que portam a justiça se encarreguem de entregá-la nas mãos dos 
merecedores!

Ela estava a uns cinquenta metros da casa agora:

- Quem é você? O que quer comigo? – Ela perguntou cansada.

- Entre! – disse a voz que parecia vir de uma caverna.

Estava curiosa, mas não estava com pressa. Foi devagar e com calma. Um passo de cada vez até chega à porta. Ali ficou por alguns segundos pensando se entrava ou, num incrível acesso de arrependimento, voltava para sua casa cripta.

- Entre, minha criança! – era uma voz cavernosa, mas ainda assim carinhosa. – não tenha medo!

Deu um passo para dentro. Dois. Três.

- Não tenha medo! – repetiu. Dentro da casa semiescura um vulto estava parado em frente à lareira. Não conseguia definir se era homem ou mulher e nem sua voz ajudava nessa definição, pois a voz parecia vir de uma profunda caverna. Mas não deixava de ser uma voz doce e calmante. – entre, minha pequena criança!

Vitória estava dentro da casa de corpo todo agora. Olhava com olhos cansados para a figura na semiescuridão.

- Seja bem vinda! – disse a voz que agora não vinha pelo vento, mas sim do estranho dentro daquela casa que, apesar de estar numa escuridão quase total, ainda conseguia ter um ar agradável. – sente-se, coma alguma coisa! – a pessoa disse sem se voltar para ela.

No centro da casa, em uma mesa iluminada por uma pequena vela, havia um prato com um belo pedaço de carne de frango de cheiro delicioso e uma xícara de café quente. Ela pensou em resistir ao convite, mas não conseguiu, finalmente a fome falou mais alto e ela se entregou ao desejo do corpo em se manter forte.

A gordura do frango escorria pelo seu queixo, quando o provável dono daquela casa tornou a falar
:
- Vejo que em seu coração há desejo de que a justiça seja feita! – ele se voltou para Vitória. Era um homem de boa aparência e bem vestido. Na mão direita uma bengala com um cabo cromado em aço reluzente. O sorriso era enigmático.

- Não entendo o que quer de mim! – disse ela limpando o queixo com as costas das mãos. – sou uma viúva, que acabou de deixar a casa com dois filhos repousando o sono eterno. – as lágrimas tentaram brotar nos olhos, mas ela as conteve.

- Sei muito bem disso, Vitória! – Ela não se lembrava de ter dito seu nome para aquele estranho, mas nem questionou. – Sei de suas lutas, conquistas e de suas muitas derrotas. Sei que sempre fez de um tudo para que seus filhos tivessem o melhor depois da morte do pai. Sei que se sujeitou a todo tipo de trabalho honesto para pagar a escola e a boa alimentação que eles tinham.

Ela deixou um bom pedaço da carne de lado e nem provou a xícara de café. O coração apertou tanto que parecia querer saltar do peito. Se havia dor pior do que ver os filhos mortos ela queria conhecer, pois a dor que estava voltando a sentir era muito dolorosa.

- A Morte Rubra caiu com violência sobre esse país. Bons e maus sentiram na pele, de várias maneiras, a força da morte, mas isso era uma coisa que poderia ser impedida. Isso era algo que os governantes e líderes desse país poderiam ter evitado – o homem de roupas finas sentou-se na cadeira na frente dela. Era elegante e com aparência de um anjo. – ao invés de salvar o povo, o que eles fizeram? – ele perguntou olhando no fundo dos olhos dela e ele mesmo respondeu. – Abandonaram o povo à própria sorte!

Silêncio por alguns instantes. O vento lá fora bateu à porta de alguma casa na rua deserta. 

- O que quer de mim? – ela perguntou desanimada.

- Essa pergunta sou eu quem lhe faz. – ele sorriu para ela. – O que você quer de mim, Vitória? – o pequeno cômodo pareceu se iluminar mais com proposta do homem. – Qual o desejo de seu coração com relação àqueles que abandonaram você e seus filhos?

Se havia alguém que podia ter evitado toda essa desgraça e não evitou, então nada mais justo do que buscar justiça, ela pensou.

- O grande mal da sociedade é aceitar calado todo o julgo que lhe é imposto pelos prósperos e poderosos desse mundo. Foi assim no antigo Egito, quando faraó forçou a todos aqueles que trabalharam na construção da pirâmide para que fossem sepultados juntos com ele. Foi assim quando Herodes mandou matar todas as crianças recém-nascidas em seu domínio. E assim a historia vai se repetindo. Até quando vocês vão aceitar calados? Até quando vão permitir que alguns poucos assassinem muitos milhares?

Agora foi a vez de Vitória olhar profundamente nos olhos dele.

- Eu quero ser a portadora da justiça contra os que fazem o mal. Eu quero levar para os corruptos a condenação! 

- Venha comigo. – disse ela pegando-a pela mão.

De repente já não estavam mais naquele pequeno cômodo enfumaçado, e sim diante de uma grande muralha totalmente lacrada para impedir que qualquer um entrasse. Havia música e risos dentro daquela fortaleza. Parecia haver uma festa.

- É isso que eles fazem! – apontou para o muro aparentemente impenetrável. – Eles pegam seu ouro e sua prata. Suas bebidas e comidas. Homens, mulheres, príncipes e princesas se isolam daqueles que estão morrendo aqui fora. Acham-se protegidos da maldade que causaram aos humildes ao se isolarem dentro de seus castelos fortificados.

O peito de Vitória ardeu com ódio ao ouvir a música e as risadas. 

Então, enquanto eu chorava meus filhos mortos, os poderosos se divertiam, ela pensou com lágrimas brotando de seus olhos, lágrimas que há muito estavam extintas. A raiva tomara conta de seu peito ferido pela dor da perda.

Uma orquestra muito organizada celebrava algo lá dentro dos muros. Talvez celebrassem a vida. 
Talvez celebrassem suas imensas fortunas ou suas fartas mesas sobrecarregadas de carne e vinho. Vitória imaginava as gargalhadas, os risos e a soberba daqueles que viraram as costas para quem não podia se defender.

- Quer levar justiça para aqueles que deixaram você e sua família nas mãos da própria sorte? – perguntou o homem com voz mansa e olhar de anjo. Havia um sorriso malicioso em seus lábios.

Ela apenas estendeu a mão aberta para ele. 

- Apenas me diga como entrar. – ela completou.

- Quando há desejo no coração as coisas se tornam fáceis. – ele segurou a mão dela e ambos entraram no castelo.

O último pensamento dela não foi em seus filhos mortos naquela casa cripta, mas sim, naquele cão que andava sem rumo pelas ruas cheias de cadáveres. Será que ele estava indo para o nada? Ou será que ele encontrou solução para sua existência?


Anderson Silva
   


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