Companhia das Letras
Romance/Literatura Brasileira
Número de páginas: 248
Sinopse: “Quarenta dias no deserto, quarenta anos." É o que escreve Alice, a narradora de Quarenta dias, ao anotar num caderno escolar pautado seu mergulho gradual em dias de desespero, perdida numa periferia empobrecida que ela não conhece, à procura de um rapaz que ela não sabe ao certo se existe. Alice é uma professora aposentada, que mantinha uma vida pacata em João Pessoa até ser obrigada pela filha a deixar tudo para trás e se mudar para Porto Alegre. Mas uma reviravolta familiar a deixa abandonada à própria sorte, numa cidade que lhe é estranha, e impossibilitada de voltar ao antigo lar. Ao saber que Cícero Araújo, filho de uma conhecida da Paraíba, desapareceu em algum lugar dali, ela se lança numa busca frenética, que a levará às raias da insanidade. "Eu não contava mais horas nem dias", escreve Alice. "Guiavam-me o amanhecer e o entardecer, a chuva, o frio, o sol, a fome que se resolvia com qualquer coisa, não mais de dez reais por dia.”
Quarenta Dias era o último livro de uma (imensa) lista de leituras que meu professor de Literatura Brasileira Contemporânea solicitou esse semestre. Eu havia acabado de ler Harmada e estava desnorteada ainda, imaginado o que Quarenta Dias me reservava. Fico feliz em lhes dizer que foi uma grata surpresa.
Um livro surpreendente leve e emocional. Uma história tão verídica que chega a doer. Contada com uma simplicidade, uma delicadeza, que contribui ainda mais para seu caráter reflexivo.
Alice nasceu na Paraíba, se apaixonou, teve uma filha, enviuvou e trabalhou a vida toda como professora de francês. Um dia, sua filha, que estava muito bem casada com um gaúcho e morando no Rio Grande do Sul, resolve que queria ser mãe. Na mente minúscula dela, Alice deveria largar tudo, pedir aposentadoria e vir morar com ela, para cuidar do neto (é o fim da picada).
É claro que essa não era a ideia de futuro que Alice tinha em mente, cuidar de criança e morar em uma geladeira (para ela, nordestina, as temperaturas do sul eram congelantes), mas, depois de muita chantagem emocional por parte da filha, ela acaba aceitando.
Gente, essa filha da Alice me deixou com tanta raiva, mas tanta raiva que vocês não têm ideia! Como se não bastasse achar que a mãe dela era babá e fazê-la vir morar do outro lado do Brasil, a bonita resolve ir para a Europa. Isso mesmo. Ela arrasta a mãe para o Rio Grande do Sul e daí vai para a Europa com o maridex, bem linda e formosa, e abandona a mãe em uma terra desconhecida, onde ela não tem amigos e ainda é descriminada.
O que vocês acham que aconteceu com a Alice? Surtou, é claro. Surtou e saiu correndo. Entrou em um táxi, foi parar no apartamento dela (do qual ela também não gostava), inventou uma história de viagem para caso a procurassem e ficou escondida.
Foi então que uma amiga lá da Paraíba liga para ela contado do Cícero, filho de uma outra amiga, que estava trabalhando no RS e simplesmente parou de dar notícias para a mãe. Será que a Alice não podia procurar por ele e avisá-lo de que a mãe estava preocupada com a falta de notícias? Claro, claro ela faria isso.
Essa foi a desculpa perfeita para ela sair andando sem rumo pelas ruas do Rio Grande do Sul, sempre munida da história do Cícero e sua mãe, coitada, preocupada com o filho perdido em uma terra distante.
Alice vaga pelas ruas, becos e favelas por quarenta dias. E o mais importante: ela faz isso por opção. Dorme nas ruas, sofre preconceito, se redescobre. É estranho pensar que uma professora aposentada, com um apartamento novinho em folha e uma filha financeiramente estável (embora emocionalmente ausente) opte por viver nas ruas, dormir no chão, tomar banho na rodoviária. Mas para onde mais ela iria? Voltar para uma casa vazia? Para as conversas com seu caderno-diário ou com a diarista? Que vida ela tinha para que pudesse ter para onde voltar?
“Aqui no caderno eu paro agora, Barbie. Vou cuidar das urgências, da luta contra o caos material, que o outro caos, o da minha cabeça, já não me preocupa tanto.” (pág. 203)
É interessante ressaltar que só ficamos sabendo disso tudo depois que ela já voltou para casa. Como não tem com quem conversar, conta suas andanças para um caderno da Barbie, o qual salvou de ir para o lixo no dia em que sua filha fez suas malas para a mudança. É triste pensar em como essa história é real.
Assim como a filha de Alice, existem muitas outras por aí. Que pensam que suas mães não fizeram o bastante em criá-las, precisam criar os netos também, enquanto elas vão em busca de seus objetivos pessoais. Nada contra quem conta com a ajuda dos avós para cuidar de seus filhos, mas a questão aqui é que Alice não queria isso. Ela não queria ter que abrir mão de sua liberdade, sua profissão, sua casa, sua terra, sua vida e ser arrastada e ‘reduzida’ ao papel de avó. Abandonada em uma terra estranha, gelada, sem ninguém. Só com um caderno com uma boneca boba e sem vida. Sem ninguém para conversar. Sem amor.
É triste constatar que é essa a visão que se tem da mulher ainda hoje. Nem toda luta pelo empoderamento feminino foi capaz de acabar com a mentalidade pequena de que a mulher nasceu para constituir família. Crescer, casar, ser mãe, ser avó, morrer. Morrer. Morrer infeliz, talvez? Não realizada? Ou morrer como uma forma de então se libertar do padrão feminino imposto pela sociedade?
Nesses quarenta dias, durante os quais Alice conheceu todo o tipo de gente, por onde andou sua filha? Passei o livro todo me perguntando isso. Cadê aquela desmiolada? Foi para a Europa passear e deixou a mãe, abandonada, triste e sem rumo. Será que em momento algum a consciência dela não pesou? É capaz alguém ser tão insensível assim com a mulher que lhe deu a vida?
Nessa história, só conseguimos saber o que Alice conta para a Barbie, apenas aquilo de que ela se recorda de ter vivido. Presente e passado vão se mesclando para a construção do enredo e alguns trechos acabam abruptamente. E é assim o final do livro: de repente, acabou.
Mas assim também não o é o fim da vida?...
Gabriele Sachinski
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